A cultura do álcool
Como você comemora uma promoção no emprego? Como você celebra o seu aniversário, ou as festas de final de ano? Como você confraterniza com os amigos? Como você reage diante de uma demissão, de uma frustração ou do término de um relacionamento? Existem várias respostas para essas perguntas, mas uma delas é comum e recorrente: beber. O álcool é versátil, pode ser utilizado para celebrar conquistas, para socializar, para relaxar ou para afogar as mágoas. Logo, tem “cadeira cativa” em eventos significativos que vão de aniversários a velórios (Sudhinaraset, Wigglesworth, & Takeuchi, 2016).
Contradição ou mera coincidência?
A “cultura do beber” não é um fenômeno novo, tampouco restrito a locais geográficos específicos. Historicamente, tem atravessado a arte, o cinema, os ritos religiosos, as letras das músicas, os eventos esportivos e por aí adiante. Por trás disso, obviamente há o efeito cerebral de prazer, a sensação de relaxamento e uma indústria que fatura bilhões, sob uma ideia socialmente disseminada – e ingênua – de que manter o controle sobre o consumo é uma decisão racional. Antes fosse!
Neste momento, você pode estar pensando: cerca de 10% da população mundial é dependente de álcool, mas o percentual de pessoas que “bebe socialmente” sem apresentar dependência é muito superior. E esta constatação é correta, apesar de problemática. Para compreendê-la, precisamos atentar para dois fatos: o primeiro é que todo o uso problemático é precedido pelo uso recreativo. O segundo é que nem todos os desfechos trágicos envolvendo o álcool ocorrem em pessoas dependentes.
Efeitos da dependência e efeitos do abuso
É amplamente divulgado que o uso e abuso de bebidas alcoólicas é responsável por 3,3 milhões de mortes anuais, o que equivale a 6% de todos os óbitos do mundo. Atualmente a ideia de que o consumo moderado poderia ocasionar benefícios a saúde tem sido confrontada (Chiva-Blanch & Badimon, 2019) e há evidências sólidas que os riscos superam eventuais benefícios, já que mesmo o uso modesto contribui para mais de 60 condições de saúde agudas e crônicas e mais de 200 doenças. Embora a patogenicidade e letalidade das doenças crônicas dependam da quantidade do álcool consumido e dos padrões de consumo, nenhum dos estudos de revisão relatou um “nível seguro” de consumo de álcool (Chiva-Blanch & Badimon, 2019).
Porém, mesmo excluindo os desfechos decorrentes especificamente da dependência, ainda há os efeitos que independem desta condição. Diversos eventos adversos e até mesmo fatais são relatados após o consumo em binge (beber muito em um curto espaço de tempo). Estima-se que 18% dos conflitos interpessoais e dos casos de violência, 27% dos acidentes de trânsito, 18% dos suicídios envolvam o consumo prévio de bebidas alcoólicas (Iranpour & Nakhaee, 2019). Também, poderíamos citar outras condições como exposição moral incluindo condutas sexuais de risco (Rehm, 2011).
Consumo de álcool nas festas de final de ano
Nos últimos meses, observamos o aumento do consumo de álcool durante a pandemia (Ornell et al., 2020) e com as festas de final de ano se aproximando, a preocupação com as consequências do uso abusivo aumenta. Se sabe que no mês de dezembro, ocorrem mais vendas, consumo e mortes relacionadas ao álcool. Há estudos demonstrando que, apesar da variação semanal no consumo de álcool atingir o pico às sextas-feiras e sábados, no Natal e no Ano Novo os índices são mais elevados em comparação com restante do ano (Kushnir & Cunningham, 2014), o que pode explicar estes desfechos trágicos. Não há uso de álcool isento de riscos, mas para quem decidir beber, alguns cuidados podem ser pertinentes:
Estes cuidados podem prevenir que o excesso de hoje seja a depressão de amanhã.
Referências
APA. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental disorders (DSM-5). In. Washington: American Psychiatric Association.
Chiva-Blanch, G., & Badimon, L. (2019). Benefits and Risks of Moderate Alcohol Consumption on Cardiovascular Disease: Current Findings and Controversies. Nutrients, 12(1). doi:10.3390/nu12010108
Iranpour, A., & Nakhaee, N. (2019). A Review of Alcohol-Related Harms: A Recent Update. Addict Health, 11(2), 129-137. doi:10.22122/ahj.v11i2.225
Kushnir, V., & Cunningham, J. A. (2014). Event-specific drinking in the general population. J Stud Alcohol Drugs, 75(6), 968-972. doi:10.15288/jsad.2014.75.968
Ornell, F., Halpern, S. C., Dalbosco, C., Sordi, A. O., Stock, B. S., Kessler, F., & Telles, L. B. (2020). Domestic violence and drug use during the COVID-19 pandemic. Pensando Famílias, 24, 3-11.
Rehm, J. (2011). The Risks Associated With Alcohol Use and Alcoholism. In Alcohol Res Health (Vol. 34, pp. 135-143).
Sudhinaraset, M., Wigglesworth, C., & Takeuchi, D. T. (2016). Social and Cultural Contexts of Alcohol Use: Influences in a Social-Ecological Framework. Alcohol Res, 38(1), 35-45.
Psicólogo clínico, possui Residência em Saúde Mental (ESPRS) e especialização em Dependência Química; Mestre e Doutorando em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS). Pesquisador no Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas - Hospital de Clínicas de Porto Alegre / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Editor da Revista Brasileira de Psicoterapia. Professor titular do curso de Psicologia da Faculdade IBGEN, Grupo Uniftec e responsável técnico pelo Previne Saúde Mental.
E-mail: felipeornell@gmail.com
Site: http://lattes.cnpq.br/5402861891632171